Metodologia prisional exemplo de reinserção social poderá ter unidade em Novo Hamburgo
No local, foram recebidos pelo coordenador do Núcleo de Apoio à Fiscalização dos Estabelecimentos Penais do Ministério Público do Rio Grande do Sul (MPRS), procurador de justiça Gilmar Bortolotto, e pela presidente da Apac Porto Alegre, Célia Amaral. O grupo incluiu ainda a presidente da Apac NH, Lisandra Müller, e a vice-presidente, Nair Laci Braun, além de voluntários e assessores parlamentares.
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A primeira unidade prisional que utiliza o método Apac no RS foi inaugurada em dezembro de 2018, após assinatura de convênio entre a associação, governo do Estado e MPRS. Diferentemente do sistema comum, os recuperandos tutelados pelas Apacs precisam se comprometer com a execução de tarefas inerentes à limpeza e manutenção do espaço e com o aprendizado diário. As famílias são parte do processo: precisam ter fácil acesso ao centro de reintegração e estar comprometidas a aplicar os ensinamentos. Hoje, na unidade Partenon, são 40 vagas ocupadas por condenados enquadrados em qualquer tipo de delito. A rotina rígida de trabalho e estudo inclui ainda atendimento médico e psicológico, aulas de ioga, reforço escolar, oficinas de artesanato, acupuntura e mais de mil títulos literários disponíveis. Algumas atividades foram suspensas em virtude da pandemia.
Com pena inicial de mais de 40 anos, Carlos Magno, 65, viu na Apac uma oportunidade de reaproximação com as três filhas e, mais do que isso, de reencontrar-se consigo mesmo. “Estava há dois anos e sete meses no Central. Lá, tinha uma atividade e uma posição relativamente confortável. Não sofria por mim, mas por ver a miséria que há naquele lugar”, lamentou. Quando soube da existência da Apac, há dois anos, ele escreveu uma série de cartas. Uma delas ao diretor do presídio, que encaminhou ao procurador Bortolotto. Hoje, Magno atua como instrutor do método aos demais recuperandos e conta a transformação que ocorreu no relacionamento com sua família. “Quando a gente chega aqui, está muito deteriorado, física e psicologicamente. Minhas filhas não iam ao presídio porque tinham medo. Já recebi visita de pessoas que não via há mais de dez anos. Esse é o maior estímulo que temos aqui.”
Psicólogo de formação, Walter Garcez Filho, 61 anos, almeja usar seus conhecimentos para auxiliar dependentes químicos quando estiver em liberdade. Ele, que cumpre pena há oito meses na Apac, conta o quão doloroso e revolucionário é o processo. “Quando você comete um crime, a sociedade vira as costas pra você. Muitas vezes, a família também. Cada um que está aqui sabe o que fez, mas isso é irrelevante para os colegas e voluntários. Nós nos sentimos amados aqui dentro e há uma confiança muito grande, uma vez que temos a chave da porta.” Para ele, a iniciativa parece algo inovador, mas é o que prevê a lei de execução penal – recuperar o apenado. “Estar no sistema comum é mais fácil porque não tem cobranças. Em nenhum momento você é forçado a mudar de vida”, ponderou. Além das atividades diárias, Walter pretende voltar aos estudos, cursando Pedagogia.
Na Apac, a maior parte do trabalho é feita por voluntários e pelos próprios apenados. Dentre os poucos funcionários está o encarregado da segurança e da disciplina, Joel Pedroso. Aos 44 anos, o egresso do sistema prisional recebeu a oportunidade não só de ganhar a vida de forma digna, mas de ajudar pessoas que, assim como ele, querem pagar pelos crimes cometidos e retornar à sociedade.
Antes de trabalhar na Apac, Pedroso cumpriu pena no Presídio Central e na Penitenciária Estadual do Jacuí. Em livramento condicional desde 2018, foi indicado para a vaga por ter decidido abandonar de vez a marginalidade. “Percebi que a vida que eu levava não era boa, só ilusão. Deixei para trás tudo o que tinha adquirido no crime para recomeçar.” Hoje, ele encara com amor a missão de auxiliar aqueles que sofreram nos presídios. “Esse trabalho vai além do que a gente pensa, porque tu não está ajudando somente o recuperando, está ajudando a família dele e a sociedade. Diferente do sistema comum, não trabalhamos armados, e sim com muito diálogo. Aqui se resgata a dignidade dessas pessoas.”
“Nada do que se possa dizer é comparado à experiência de visitar uma unidade e ver de perto a aplicação da metodologia”, garante a presidente da Apac Novo Hamburgo, Lisandra Müller. A entidade, constituída em 2019, espera que, com o auxílio da Câmara, possa encontrar um imóvel disponível e adequado para iniciar o trabalho na cidade.
Surpreso com a qualidade das ações promovidas na Apac Porto Alegre, o presidente Raizer Ferreira saiu convencido de que é possível adotar o modelo em Novo Hamburgo. “Eu me senti muito acolhido aqui e acredito que, entendendo como funciona, será possível resgatar outras pessoas oriundas do sistema prisional na nossa cidade.” O chefe do Legislativo comprometeu-se a acompanhar as tratativas para que se encontre um prédio destinado à instalação do centro de reintegração. Já Lourdes Valim, integrante da Comissão de Direitos Humanos, se emocionou ao percorrer os corredores da instituição. “Aqui eles cumprem a pena igualmente em regime fechado, mas com dignidade, podendo estudar e fazer outras atividades. Os testemunhos desses homens são incríveis. A Apac é uma reconstrução na vida deles.”
Célia Amaral considera a iniciativa uma alternativa de mudança para a sociedade, uma perspectiva para aqueles que não teriam futuro. “A Apac já é realidade no Rio Grande do Sul e nós queremos ver Novo Hamburgo conosco. Sempre acreditei que existe uma maneira de recuperar o ser humano, que as pessoas precisam de uma nova chance. Se queremos mudanças, precisamos iniciar com a gente.”
Segundo ela, o crime existe por diversas razões. Ele não inicia no fato, mas nas condições em que o indivíduo nasceu, nas chances que teve na vida. Conforme a presidente da associação, o principal desafio é empreender uma mudança de cultura na sociedade, que quer manter o preso o mais distante possível. “Tentamos passar aquilo que temos de melhor, para que eles possam ter subsídios para serem felizes. Nenhum preso reclama do atendimento que damos aqui. O que eles reclamam é de não ter nome, não ter uma cama para dormir.”
Cada espaço da unidade foi apresentado pelos próprios recuperandos, que agradeceram a oportunidade de mostrar a metodologia e falaram da motivação de receber voluntários e visitantes. “A vida foi nos levando e chegamos aqui ao lado, no Central. Cheiro horrível! E já somos tratados da pior maneira possível, apresentados ao sistema. Somos levados até a galeria onde vamos ficar e pensamos: - Agora sou isso , não tem pra onde ir. Minhas decisões me trouxeram até aqui. Nunca mais vou ser respeitado, nunca mais terei o amor de ninguém. E como se amar nessas condições? É o fundo do poço. Lá a gente dorme no chão ou dorme amarrado à cela. As pessoas passam por cima de ti, roubam tuas coisas. Respeito não há, nem privacidade. E quando você sai, é repudiado. Porque você é criminoso, e criminoso não merece carinho. Como alguém vai mudar apanhando? Como tu vai mudar comendo lavagem? E aí, o crime te estende a mão. Só que tem um preço. Mas nós nos arrependemos e tivemos uma mão para levantar. A partir do momento em que a gente começa essa mudança, as coisas começam a acontecer, nossa família se reaproxima. A Apac é a oportunidade da gente se remontar, de colar os caquinhos que sobraram. É um trabalho de restauração”, declamou o anfitrião André Luís Mesquita.
Em meio aos muros bem pintados, onde se lê a frase “Do amor ninguém foge”, um a um pronunciou seu nome, com orgulho, antes de entoarem dois louvores. A espiritualidade, sem distinção de religião, é pressuposto fundamental do método Apac. Alguns pediram a palavra para falar das dificuldades do cárcere. Outros mencionaram a alegria de saber que mais apenados podem ser acolhidos futuramente em uma casa prisional vinculada à entidade. Mas todos, sem exceção, demonstraram gratidão pela oportunidade de cumprir sua pena com dignidade.
Apac
A metodologia adotada pelas Associações de Proteção e Assistência aos Condenados busca a reintegração social dos apenados de forma humanizada e com autodisciplina. Seu propósito é evitar a reincidência no crime e oferecer caminhos alternativos. Nelas, os próprios presos tornam-se corresponsáveis por sua recuperação. Para isso, contam também com assistência espiritual, jurídica, médica e psicológica, prestadas pela comunidade. Conforme a Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe), o método Apac reduz custos, possibilita menor emprego de efetivo e representa média de reincidência inferior ao modelo tradicional.