Vereadores aprovam serviço de acolhimento familiar para crianças e adolescentes

por Luís Francisco Caselani última modificação 02/03/2022 20h24
02/03/2022 – A Câmara de Novo Hamburgo aprovou por unanimidade nesta quarta-feira, 2, projeto de lei que cria no município o Serviço de Acolhimento Familiar, destinado a jovens afastados de suas famílias de origem por medida protetiva. A modalidade, apresentada como alternativa à institucionalização, é prevista pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) desde 2009. A estratégia é utilizada em caráter transitório. Famílias acolhedoras devidamente habilitadas oferecem um lar temporário e a estrutura necessária para o rompimento do ciclo de violações de direitos e a reconstrução de vínculos até a reintegração do acolhido à família de origem ou adotiva. A matéria, de autoria do Poder Executivo, será novamente apreciada na próxima segunda-feira, 7, em decisão final.
Vereadores aprovam serviço de acolhimento familiar para crianças e adolescentes

Foto: Daniele Souza/CMNH

Conforme o Projeto de Lei nº 104/2021, a inclusão da criança ou adolescente no serviço de acolhimento ocorrerá por determinação judicial. As famílias interessadas em receber esses jovens deverão obedecer a uma série de requisitos e se cadastrar junto à Prefeitura. A permanência não se estenderá por mais de 18 meses. O período só poderá ser prorrogado em caso de comprovada necessidade fundamentada pela autoridade judiciária.

O serviço de acolhimento tem por objetivo garantir o direito fundamental das crianças e adolescentes à convivência familiar e comunitária; possibilitar a reconstrução e o fortalecimento de vínculos; proporcionar atendimento individualizado; contribuir para a superação da situação vivida pelos jovens; e prepará-los para o retorno à família de origem ou extensa, encaminhamento para família substituta ou ainda para a vida autônoma, no caso de adolescentes.

Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, o vereador Enio Brizola (PT) relembra que o colegiado promoveu audiência pública no ano passado para elucidação do tema. Embora favorável à proposta, o parlamentar antecipou que já protocolou emenda para a alteração de alguns pontos. As modificações irão a votação junto ao projeto de lei na próxima segunda-feira, 7.

“Este é um projeto bem elaborado, mas temos o entendimento de que é necessária uma complementação, o que será feito por meio de emenda. Esses apontamentos buscam contribuir no sentido de deixar o projeto totalmente de acordo com o ECA. Entendemos que o programa é complementar às demais modalidades. A nossa preocupação é que fique garantido que as outras formas de acolhimento permaneçam funcionando de forma plena e equitativa na cidade”, afirmou Brizola.

Ex-conselheira tutelar, a vereadora Tita (PSDB) recorreu às suas próprias experiências para defender a aprovação do PL. “Sempre fui de acolher as pessoas. Passaram pela minha casa muitas pessoas que hoje são formadas, às quais consegui dar esse encaminhamento. É muito importante para essas crianças e adolescentes não irem para um abrigo, mas para uma família. Eu espero que as famílias acolhedoras estejam bem preparadas e façam por amor. Isso será bom para o crescimento do próprio núcleo familiar”, defendeu a vereadora.

Felipe Kuhn Braun (PP) enalteceu as diferentes etapas de debate do PL na Câmara até a votação da matéria em plenário. “Quando este projeto veio para o Legislativo, havia diversas dúvidas, pois sabemos que Novo Hamburgo conta com várias crianças nessa situação difícil. Mas esta é uma premente necessidade. Que o programa seja de fato aplicado e se torne uma política pública do nosso Município”, opinou o progressista.

Projeto-piloto com crianças de até 6 anos

A convite de diversos vereadores, o secretário municipal de Desenvolvimento Social, Eliton Ávila, subiu à tribuna para esclarecer dúvidas sobre o projeto. “Esta proposta foi construída com muitas pessoas, representantes do Executivo, Judiciário, Ministério Público, Conselho Tutelar, entidades e a própria Comissão de Direitos Humanos desta Casa. Participamos de uma audiência pública na qual muitas pessoas tiveram a oportunidade de se pronunciar e compartilhar seu entendimento sobre o projeto”, contextualizou.

O secretário reforçou que o acolhimento familiar surge como uma modalidade adicional e antecipou que a ideia inicial é organizar um projeto-piloto com 15 crianças de 0 a 6 anos. “A SDS irá criar um departamento específico, formado por técnicos responsáveis pelo acompanhamento das famílias cadastradas, auxiliando em tudo que estiver ao nosso alcance. Hoje, nós temos aproximadamente 180 crianças em acolhimento. Se não encontrarmos uma solução para esse problema, daqui a cinco ou dez anos teremos 200, 250, 300. A ideia, com as famílias acolhedoras, é buscarmos a redução do número. Além disso, precisamos pensar na criança. Em um abrigo, temos um técnico cuidando de cinco bebês, por exemplo. Numa família acolhedora, será um atendimento exclusivo feito por um pai ou uma mãe”, comparou.

Diretora de Assistência Social da Prefeitura, a psicóloga Anete Cunha explicou o foco da pasta na faixa etária até 6 anos. “É na primeira infância que se forma a personalidade das crianças. É ali que se precisa de um cuidado maior e mais constante. Ao contrário de uma família, o abrigo tem dificuldade em propiciar isso, porque a cada 12 horas troca a pessoa de referência. Com isso, não existe constância no cuidado, e isso traz prejuízos para o desenvolvimento psicoemocional das crianças”, detalhou.

A diretora reiterou que o acolhimento familiar não é uma criação de Novo Hamburgo. Segundo dados de 2016 do Sistema Único de Assistência Social (Suas), o serviço está presente em mais de 500 municípios brasileiros. Três anos antes, o país aderiu a uma mobilização regional pelo fim da institucionalização de crianças menores de 3 anos. “No Brasil, o projeto começou na cidade de Cascavel. Lá não existem mais abrigos e casas-lares. Eles contam apenas com famílias acolhedoras, com uma média de 200 famílias inscritas. Inclusive adolescentes que cometem ato infracional, que são o perfil mais agravado, estavam sendo acolhidos na área rural do município, já com bons resultados. Cascavel é o município de referência, mas há várias cidades implementando em todo o país”, informou.

Apoio do Judiciário

Também a convite de vereadores, a juíza Ângela Martini e a promotora de justiça Andreia Alliatti, ambas ligadas à área da infância e juventude em Novo Hamburgo, externaram seu apoio ao projeto de lei. Para Ângela, a votação da matéria pela Câmara é um “momento de festa” para o Poder Judiciário. “Já há algum tempo temos conversado com o Executivo para que implantássemos este programa em Novo Hamburgo, por acreditarmos ser a melhor alternativa, dentro da legislação, para atender as nossas crianças afastadas de suas casas por terem sido vítimas de violência e diversos tipos de abuso”, contou a juíza.

Segundo a magistrada, o encaminhamento para família acolhedora ocorrerá apenas após a abertura e andamento de processo. “O trâmite se volta inicialmente para a tentativa de recolocar essa criança na sua família de origem. A ideia do acolhimento, seja ele institucional ou familiar, é proteger a criança das violações de direito e trabalhar a família para que não reincida nessa prática. Muitas vezes isso não é possível, aí entra a questão da adoção. A família acolhedora será o momento de transição”, enfatizou.

A promotora Andreia Alliatti salientou que o acolhimento familiar é uma bandeira sustentada pelo Ministério Público em todo o Rio Grande do Sul. “Quase sempre o que atende melhor a criança e o adolescente é aquilo que mais se aproxima de uma família. É uma casa, com pais, irmãos. Sempre é doloroso esse acolhimento para a criança. Queremos minimizar essa dor, esse impacto. Por isso, o acolhimento institucional só é pedido pelo Ministério Público e pelo Conselho Tutelar como última alternativa. Tentamos várias outras coisas antes. Queremos que a criança receba a atenção de uma família. Este projeto é um ganho para a nossa sociedade”, concluiu.

Sobre o projeto

O Serviço de Acolhimento Familiar, gerido pela Prefeitura, será coordenado por um profissional com formação em nível superior. A equipe técnica será composta ainda por pelo menos um assistente social e um psicólogo. Os integrantes serão responsáveis por prestar informações ao Ministério Público e à Justiça sobre as crianças acolhidas. A equipe também fará um acompanhamento sistemático das famílias acolhedoras, dos jovens acolhidos e das famílias de origem, realizando visitas domiciliares, encontros, entrevistas, atendimentos psicossociais e encaminhamentos aos serviços da rede de proteção.

Famílias acolhedoras

Para participar do Serviço de Acolhimento Familiar, a pessoa interessada precisa residir em Novo Hamburgo há pelo menos dois anos, ter mais de 21 anos, apresentar boas condições de saúde física e mental, comprovar idoneidade moral e estabilidade financeira, obter parecer psicossocial favorável e possuir espaço físico adequado em sua residência para receber um menor de idade. O requerente também deve comprovar não estar habilitado nem interessado em adotar uma criança ou adolescente. Nenhum membro da família que resida no domicílio pode estar envolvido com uso abusivo de álcool ou drogas, e todos devem concordar com o acolhimento.

Cada família poderá receber apenas um jovem por vez. A única exceção é no caso de grupos de irmãos, que serão mantidos juntos sempre que possível. A pessoa ou família interessada em participar do serviço de acolhimento será submetida a um procedimento composto por quatro etapas: inscrição (quando será agendada a primeira entrevista), cadastro, capacitação e habilitação.

Percorridas todas as fases, o interessado assinará um termo de adesão ao serviço, comprometendo-se a prestar assistência material, moral, educacional e afetiva à criança; atender às orientações da equipe técnica e participar dos processos de acompanhamento, capacitação continuada, encontros de estudo e troca de experiências com outras famílias; informar sobre a situação do acolhido sempre que solicitado; e contribuir na preparação do jovem para o retorno à família ou adoção. Em caso de inadaptação, a família deverá comunicar a desistência formal do acolhimento e se responsabilizará pelos cuidados até novo encaminhamento.

Em todos os casos, o desligamento da criança ou adolescente da família acolhedora ocorrerá após autorização judicial. Caberá à equipe técnica suavizar essa ruptura a partir de um trabalho de preparação do jovem, aumentando de forma progressiva a interação com sua família de origem, extensa ou substituta e orientando sobre a possibilidade de manutenção de vínculos entre criança e acolhedores, respeitando o desejo de todos os envolvidos.

Bolsa-auxílio

Embora o serviço prestado pelas famílias acolhedoras tenha caráter voluntário, será garantido o direito a uma bolsa-auxílio mensal no valor de um salário-mínimo nacional para cada criança acolhida. A quantia será destinada ao custeio de despesas do jovem com alimentação, vestuário, materiais pedagógicos, serviços complementares à rede pública, transporte e atividades de cultura e lazer. Em caso de criança com deficiência ou demandas específicas de saúde, o valor poderá ser ampliado em até um terço. Qualquer descumprimento das determinações previstas no PL pode obrigar a família a ter que devolver a importância recebida durante o período de irregularidade.

Desligamento das famílias

Além do desligamento a pedido, as famílias acolhedoras poderão ser desvinculadas do serviço se descumprirem requisitos obrigatórios ou orientações da equipe técnica; derem destinação diversa à bolsa-auxílio; demonstrarem desinteresse em cuidar do acolhido; ou não aderirem ao acompanhamento sistemático. Nesses casos, a família poderá participar novamente do programa, mas deverá percorrer outra vez todas as etapas de ingresso.

O retorno só será proibido em situações de exclusão das famílias. A punição é prevista para casos de castigo físico; tratamento cruel ou degradante; maus-tratos; opressão; abuso sexual; obrigar a prestação de serviços impróprios para a idade ou reduzir a criança a condições análogas às de escravo ou empregado doméstico; e infração criminal dolosa que atente contra a idoneidade moral exigida para participar do serviço.

Manutenção do acolhimento institucional

Na justificativa anexada à matéria, a Prefeitura explica que a criação do acolhimento familiar não exclui os serviços de institucionalização prestados pelos abrigos e casas-lares. “Essas duas modalidades já estão previstas e sendo executadas na gestão municipal. Entretanto, por conta da necessidade de ampliar o trabalho de fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários, faz-se necessária a implantação do Serviço de Acolhimento Familiar”, atesta o documento assinado pela prefeita Fátima Daudt.

O texto afirma que os acolhimentos familiares estão preconizados como preferenciais em relação à institucionalização desde a vigência da Lei Federal nº 12.010/2012. “Não é, no entanto, o que se vê na prática. Menos de 5% das crianças e adolescentes acolhidos no Brasil estão em acolhimento familiar”, contextualiza o Executivo.

A justificativa aponta algumas das vantagens da proposta, como o atendimento individualizado dentro de um ambiente familiar, cercado de cuidados, carinho, atenção e afeto; a permanência em comunidade; a possibilidade de criação de vínculos; e a perspectiva de identificar referências paternas. “O afastamento do convívio familiar traz sofrimento psicológico e social às crianças e adolescentes, e a possibilidade destes serem inseridos em família acolhedora pode trazer muitos benefícios ao desenvolvimento emocional e cognitivo”, prossegue o documento.

A aprovação em primeiro turno

Na Câmara de Novo Hamburgo, os projetos são sempre apreciados em plenário duas vezes. Um dos objetivos é tornar o processo (que se inicia com a leitura da proposta no Expediente, quando começa sua tramitação) ainda mais transparente. O resultado que vale de fato é o da segunda votação, geralmente realizada na sessão seguinte. Assim, um projeto pode ser aprovado em primeiro turno e rejeitado em segundo – ou vice-versa.