Audiência pública debate retomada do Centro de Referência da Mulher e fortalecimento da rede de atendimento em Novo Hamburgo
O evento debateu casos de violência doméstica, o fluxograma da rede de atendimento e a necessidade de um espaço exclusivo para acolhimento das mulheres em situação de vulnerabilidade. A audiência ocorre em um momento em que os índices de violência contra a mulher seguem alarmantes. Em 2023, o Brasil registrou 1.463 casos de feminicídio, o maior número desde a tipificação do crime em 2015, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. No Rio Grande do Sul, no primeiro semestre de 2024, foram contabilizados 26.125 casos de violência contra a mulher, conforme dados da Secretaria de Segurança Pública do Estado.
A Mesa Diretora do debate foi composta pela promotora de Justiça, Roberta Gabardo Fava; a defensora pública Especial das Mulheres, Deisi Sartori; o secretário municipal de Segurança, delegado Rosalino Constante Seara; a secretária de Desenvolvimento Social, Gislaine Pires; a presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher (Condim), Isadora Cunha; representando o Comitê Popular das Mulheres de Novo Hamburgo, Ursula Gottschald; e o professor e advogado Daniel Kessler, representando o Núcleo de Apoio aos Direitos da Mulher (Nadim/Feevale).
Ao iniciar o debate, a vereadora Professora Luciana Martins lembrou que é a primeira audiência pública da Legislatura do Centenário. “E hoje reunimos um plenário lotado de mulheres e homens. Todo mundo lutando pela vida”, disse a parlamentar.
Daniel Kessler lembrou que o debate sobre a violência doméstica é fundamental para toda a sociedade. O professor da Feevale e advogado explicou que o Nadim presta apoio às vítimas, tanto no aspecto psicológico quanto jurídico, por meio de um trabalho realizado dentro da Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher. Segundo ele, a violência doméstica precisa ser discutida com autoridades e com a comunidade. "Esse é um mal que nos assola e, por mais esforços que sejam feitos, os números mostram que ainda estamos longe de uma realidade aceitável. A violência doméstica tem um forte aspecto sociocultural, sendo muitas vezes causada por práticas machistas que são relativizadas e normatizadas. Isso acaba resultando em diferentes formas de violência — seja sexual, moral ou psicológica. Não podemos naturalizar comportamentos que reforçam esse ciclo cruel. Muitas mulheres estão expostas a uma violência silenciosa, que as faz demorar a perceber a situação em que estão. Precisamos refletir sobre isso para que, diante dos primeiros indícios de um relacionamento abusivo, possamos intervir antes que ele se agrave. A mulher vítima de violência precisa de uma rede de apoio eficiente. Todos nós temos o dever de refletir e agir. A curto prazo, o enfrentamento é essencial. A Lei Maria da Penha, apesar de não abranger toda a complexidade do problema, trouxe avanços importantes, oferecendo estrutura para combater e punir a violência. Antes, a vítima era exposta a ambientes que reproduziam o ciclo de violência e, muitas vezes, sua palavra era questionada. Hoje, ela tem mais chances de ser acolhida. Quero ter uma visão otimista. Vejo uma nova geração mais consciente, que reconhece a existência do machismo e não normaliza práticas abusivas. Também há cada vez mais mulheres ocupando espaços que sempre deveriam ser delas. Ainda há muito a ser feito, e precisamos continuar aprimorando e fortalecendo essa estrutura de proteção e enfrentamento, disse.
O delegado Rosalino destacou que a violência contra a mulher é um problema complexo. Segundo ele, a família é a base da sociedade e, quando há um desequilíbrio nesse núcleo, diversos problemas começam a surgir. Segundo ele, com o advento da Lei Maria da Penha, criamos uma estrutura jurídica que busca inibir violências que, antes, ocorriam em silêncio, principalmente porque a vítima tinha muito medo de denunciar. O delegado acredita que o tratamento do agressor é fundamental, pois são indivíduos que, dentro do ambiente familiar, impõem sua vontade pela força, enquanto muitas mulheres, por diversos motivos, não conseguem denunciar. "A rede de proteção é essencial para acolher aquelas que decidem romper o silêncio e denunciar as agressões que acontecem de diferentes formas. Quando trabalhamos de maneira integrada, conseguimos oferecer um suporte real para essas vítimas", declarou.
Rosalino afirmou que a secretaria de Segurança tem investido em programas e ações para enfrentar esse problema, como o Departamento de Prevenção à Violência e os grupos reflexivos do programa Restaura Novo Hamburgo, que buscam conscientizar os agressores sobre os impactos de suas atitudes. "Também temos iniciativas como o Mulheres Unidas pela Paz, com atuação nos bairros Kephas e Santo Afonso, além do Programa Elas por Elas, onde um professor ensina técnicas de defesa pessoal às mulheres. Precisamos avançar ainda mais, criando novos projetos que ampliem a proteção das vítimas e fortaleçam ações como as desenvolvidas pela Patrulha Maria da Penha. O agressor, geralmente, é um indivíduo individualista que, por não ter argumentos, recorre à violência. Sem um tratamento adequado, ele continuará fazendo novas vítimas. Nosso papel é garantir que as mulheres tenham segurança para reconstruir suas vidas."
A secretária Gislaine Pires destacou a importância do plenário lotado para fortalecer o debate sobre a violência contra a mulher. "Estamos dialogando dentro da Secretaria, pois há muito a ser feito em todas as áreas. Precisamos falar sobre políticas públicas para as mulheres. Estamos apenas há dois meses na gestão, mas já viabilizando diversas ações voltadas a elas. Sabemos que o caminho é longo, mas já contamos com alguns serviços importantes.
Segundo ela, os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), por exemplo, não atendem diretamente as vítimas de violência, mas desempenham um papel essencial na prevenção. Em Novo Hamburgo, temos cinco unidades – nos bairros Canudos, Centro, Kephas, Primavera e Santo Afonso –, que oferecem suporte às famílias. O CRAS do Centro realiza um trabalho específico para mulheres, com foco na prevenção, para evitar que os casos cheguem ao Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), que atende pessoas em situação de risco.
"No CREAS, contamos com o programa Viva Mulher, que, no último ano, atendeu 59 mulheres vítimas de violência, oferecendo um acompanhamento especializado e contínuo para todos os cinco tipos de violência previstos na Lei Maria da Penha. O atendimento ocorre tanto por busca espontânea das mulheres quanto por encaminhamento da rede municipal, incluindo UBSs, escolas e serviços de assistência social. Além disso, proporcionamos escuta qualificada, espaços de reflexão, apoio jurídico e estratégias para a reconstrução familiar. Atualmente, não temos um abrigo municipal, mas trabalhamos de forma estratégica para retirar as mulheres do foco da violência e encaminhá-las para um local seguro. Durante os dias úteis, o CREAS realiza esses atendimentos. Nos finais de semana, a Delegacia da Mulher aciona o plantão responsável pelo acolhimento, cuja localização não é divulgada para preservar a segurança das vítimas. Sobre a implementação de um Centro de Referência da Mulher (CRM) em Novo Hamburgo, precisamos de articulação entre diferentes secretarias para viabilizar recursos federais. Não podemos fazer isso apenas por meio da Secretaria de Desenvolvimento Social (SDS), então colocaremos essa pauta em discussão. O prefeito já está ciente da necessidade, e vamos buscar emendas parlamentares para viabilizar esse compromisso com as mulheres da cidade."
A promotora de Justiça Roberta enfatizou que o debate sobre a violência contra a mulher ainda está em fase inicial na sociedade, mas destacou avanços em Novo Hamburgo. "Percebemos que há mudanças acontecendo, tanto que hoje temos um plenário lotado, com a presença de diversos homens. Isso demonstra que o tema está ganhando espaço. Qual o papel do Ministério Público nesse cenário? Proteger a mulher. Seja com a criação de um Centro de Referência da Mulher, para que ela possa romper o ciclo de violência – que muitas vezes nem percebe estar vivendo –, seja com uma rede de apoio forte, especialmente no âmbito municipal. Essa audiência pública nos permite enxergar as reais necessidades das mulheres e das pessoas que estão ao lado delas diariamente. Precisamos garantir uma estrutura mínima de proteção, como escolas em tempo integral, para dar suporte às vítimas e suas famílias. Muitas mulheres têm medo de denunciar, mas é preciso coragem para romper com a violência. Quando os casos chegam até nós, no Ministério Público, normalmente já atingiram o limite. São situações extremas, de vida ou morte. Muitas mulheres nos relatam que passaram 30 ou 40 anos em um casamento sofrendo um tipo de violência que sequer reconheciam como tal. A mudança dessa realidade passa pela educação. Precisamos desconstruir o machismo, especialmente aqui no Rio Grande do Sul, onde muitas atitudes ainda são naturalizadas e aceitas como normais – quando, na verdade, não são. Esse trabalho deve começar em casa e também ser realizado pelas pessoas que atendem essas mulheres, para que não as julguem ou minimizem seu sofrimento. A violência psicológica e econômica são de difícil identificação, e muitas vítimas precisam de orientação para reconhecê-las. Muitas vezes, justificam agressões, encontram desculpas para marcas no corpo, acreditam que quedas e acidentes domésticos são apenas descuidos, quando, na verdade, podem ser sinais de violência. É fundamental que essas mulheres sejam encaminhadas para acompanhamento, evitando que a situação evolua para algo mais grave, como o feminicídio. Ele não acontece de uma hora para outra. Dá sinais. Pequenos indícios, que vão crescendo e se agravando com o tempo. As mulheres precisam de acompanhamento psicológico contínuo. Essa realidade é triste, não escolhe classe social, raça ou região – está presente em todos os lugares. Muitas vezes, os primeiros sinais são sutis, mas o impacto é devastador. O mínimo que podemos buscar para Novo Hamburgo é a criação de um Centro de Referência da Mulher."
A defensora pública Deisi Sartori ressaltou a importância da discussão, mas enfatizou a necessidade de focar na construção de soluções. "A Defensoria Pública de Novo Hamburgo é recente, foi criada em março de 2024, após uma longa luta. Antes, só existia essa estrutura em Porto Alegre, mas, felizmente, foram criadas 14 novas defensorias no estado, e Novo Hamburgo foi uma das contempladas.
Precisamos reconhecer que a luta pelos direitos das mulheres é sempre muito lenta e demorada. No entanto, precisamos continuar caminhando.
Estamos aqui, entre outras pautas, para discutir a retomada do Centro de Referência da Mulher (CRM), que já existiu na cidade, mas foi desativado por decisão de gestão. Hoje, temos o Creas Viva Mulher, que desenvolve um trabalho importante, mas não é a forma ideal de acolhimento para mulheres em situação de violência. É fundamental compreender que rede de atendimento e rede de enfrentamento são serviços distintos. A rede de enfrentamento envolve diversas instituições e exige uma articulação intersetorial para garantir que o atendimento à mulher funcione de maneira eficiente. Já a rede de atendimento tem um fluxo diferente. A retomada do CRM também fortalece a rede de enfrentamento, que atua principalmente na prevenção e na articulação dos serviços. A extinção do CRM foi um retrocesso. E nós não podemos aceitar retrocessos quando se trata dos direitos das mulheres. É essencial que sejamos protagonistas dessa luta. A forma como criamos nossos filhos e as referências que transmitimos a eles determinarão o tipo de cidadãos que teremos na próxima geração. Tudo isso passa, necessariamente, pela criação de um espaço especializado para atender mulheres vítimas de violência doméstica e de gênero. Precisamos encaminhar prazos, definir um grupo de trabalho e estabelecer como essa retomada vai acontecer na prática. Sabemos das dificuldades orçamentárias e da falta de recursos públicos, mas isso não pode ser usado como desculpa para não reativarmos um centro tão essencial. Cuidar das mulheres é, também, cuidar de crianças, adolescentes e idosos. Porque, na maioria das vezes, são as mulheres que assumem esse papel de cuidado dentro da família e da sociedade."
A presidente do Comdim, Isadora Cunha, destacou que o CRM já foi uma realidade em Novo Hamburgo. Criado há 14 anos e vinculado à secretaria de Segurança Pública, o serviço oferecia acolhimento e encaminhamento jurídico e social às vítimas, independentemente do registro de ocorrência ou do pedido de medida protetiva. Ela enfatizou como a ausência impacta toda a rede de apoio. “A cidade já tinha essa estrutura, e perder isso é pior do que nunca tê-la.”
“Conhecemos a Lei Maria da Penha como a terceira melhor do mundo, construída após uma condenação internacional do nosso país pela omissão dos direitos humanos e das mulheres, permitindo que Maria da Penha sofresse tantas vezes.”
Ela ainda ressaltou que a Lei Maria da Penha é relevante, especialmente pelas medidas protetivas de urgência. A legislação articula segurança com assistência social, saúde, educação, cultura e moradia. “A responsabilidade é de todas as esferas de poder. Hoje, as medidas protetivas são relativamente fáceis de serem aplicadas, mas os outros serviços que a lei exige do Estado brasileiro ainda não conseguimos enfrentar em Novo Hamburgo, o que se torna um problema crítico, com resquícios na nossa cultura.”
Isadora falou sobre a necessidade de quebrar o ciclo de violência, onde muitas mulheres retornam ao agressor ou entram em novos relacionamentos abusivos. Para ela, a criação da Casa da Mulher Brasileira, que oferecem um complexo de serviços, além de um CRM, é fundamental. “Nesses espaços, os órgãos da rede de proteção trabalham juntos para garantir uma resposta eficaz.”
Representando o Comitê Popular das Mulheres NH, Ursula Gottschald explicou que o grupo é formado por cerca de 40 cidadãs que atuam na divulgação de orientações, alertas e denúncias de interesses das mulheres, com atuação especialmente na praça Punta Del Leste, no Centro. Também realizam ações que não estão diretamente ligadas à causa feminina, mas que impactam diretamente as mulheres. A ativista lembrou que se o número de homicídios têm decrescido, o mesmo não acontece com os feminicídios. “Vemos diariamente nos noticiários violências que estão quase sendo normalizadas por nossa sociedade tão machista e misógina. Nos diálogos que promovemos, fica evidente que a maioria das mulheres conhecem casos de violência, quando não raro elas próprias relatam já terem sido vítimas”, pontuou.
Além do retorno do CRM, o comitê reivindica atendimento humanizado para vítimas de violência no Instituto Geral de Perícias, que a Deam seja chefiada por uma delegada mulher, o estabelecimento de protocolo organizado entre os diferentes entes federativos e a ampla divulgação de como buscar esses atendimentos.
Durante a audiência, a vereadora Daia Hanich (MDB), que será a Procuradora da Mulher em 2026, também se pronunciou sobre o tema, reforçando a importância do debate e da implementação de soluções eficazes. “Essa é uma luta de suma importância para o enfrentamento da violência doméstica na nossa cidade. Muitos casos difíceis são atendidos pela Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (DEAM). Muitas mulheres não se sentem confortáveis em ir até uma delegacia, pois acreditam que não é um ambiente acolhedor. No entanto, tenho colegas que desenvolvem um trabalho incrível ” Daia, que também é inspetora de polícia, destacou: “Que esta noite seja um marco para ações concretas, fortalecendo o compromisso com a nossa luta em defesa das vítimas de violência doméstica.”
Participação da comunidade
A comunidade presente teve espaço para falar e pôde questionar as autoridades sobre os desafios enfrentados e as medidas propostas para o fortalecimento da rede de atendimento. Danusa Alhandra, vice-presidente do Condim, destacou a importância da representatividade feminina nos espaços de poder. “Se queremos ter efetivamente o nosso CRM de volta, precisamos nos articular com uma grande conferência aqui no município e fazer com que a gestão assuma a responsabilidade de garantir os direitos das mulheres.”
Eliana Mota falou sobre o serviço destinado aos homens, dentro do Fórum, para os autores de violência doméstica e familiar. “São quase cinco anos de trabalho, com perto de 300 homens atendidos, sem reincidência para o mesmo tipo de crime”, destacou. Eliana reforçou que o trabalho é relativamente novo no estado e se colocou à disposição para trazer mais esclarecimentos sobre a proposta.
A líder comunitária Regina Domingues comentou sobre o recente caso de violência doméstica no bairro Saúde, onde uma mulher foi espancada e teve 30% do corpo queimado pelo companheiro, na frente dos filhos de oito e quatro anos. Ela rememorou outros casos recentes que foram noticiados na mídia e afirmou que também foi vítima de violência doméstica. “É muito difícil a mulher se dar conta da do que sofre. Muito mais que urgente, esses temas precisam ser debatidos.”
Outras mulheres também destacaram a importância de criar um centro que seja realmente referência para as mulheres, e não apenas um local físico. “Não podemos negociar nossos direitos,” enfatizou Débora Martins. “O CRM faz algo que nenhum outro serviço faz: avaliação de risco. Esse trabalho é imprescindível, até antes do registro do boletim de ocorrência,” afirmou.
Neiva Barbosa, do sindicato dos sapateiros e sapateiras, falou sobre as mulheres sapateiras e a coragem necessária para registrar uma ocorrência. “O centro de referência também tem o papel de discutir medidas de prevenção,” lembrou.
Por fim, Denise Azeredo falou sobre o âmbito da cultura e a sua importância, que não está apenas relacionada ao divertimento, mas também à saúde mental e à educação, por exemplo. “As denúncias precisam ser acolhidas por mulheres, porque só nós sabemos a dor,” explicou.
Encaminhamentos
O Centro de Referência é um serviço multissetorial. Ficou acordada a necessidade de se organizar uma comissão ou grupo de trabalho para restabelecer esse serviço em Novo Hamburgo, assim como se angariar recursos federais para viabilizar a sua implementação. A vereadora Luciana mencionou a criação de uma força-tarefa para entregar um documento ao Ministério da Mulher, produto desta audiência pública, sem que o Executivo municipal deixe de se comprometer. “Junto às deputadas federais, faremos essa interlocução,” finalizou a Procuradora da Mulher. Todas as autoridades presentes se comprometeram na luta pela volta do CRM em Novo Hamburgo.
Também foi sugerida a criação de uma comissão parlamentar para tratar do assunto, além de um grupo de trabalho com a presença da sociedade civil, instituído por um decreto.
A audiência pública será reprisada pela TV Câmara NH, canal 16 da Claro, e também pode ser assistida na íntegra pelo YouTube do Legislativo.