Novo Hamburgo define ações urgentes para proteger mulheres vítimas de violência
Com a audiência pública, a Codir e a Comissão Externa da Câmara dos Deputados têm como objetivo analisar dados recentes e discutir propostas concretas de prevenção e combate à violência de gênero, fortalecendo políticas públicas e redes de apoio às mulheres
Ao abrir o debate, a vereadora Professora Luciana Martins (PT), presidente da Codir e procuradora da Mulher do Legislativo, classificou o feminicídio como uma epidemia nacional que também atinge Novo Hamburgo. “A presença da Comissão Externa aqui tem o propósito de compreender a realidade local e contribuir para a construção de um relatório nacional e estadual. É hora de fortalecer a rede de proteção e reafirmar um compromisso coletivo: nenhuma mulher a menos. As mulheres de Novo Hamburgo e de todo o país querem viver — e viver é um direito”, afirmou.
A deputada federal Fernanda Melchionna (PSOL/RS), coordenadora da Comissão Externa, abriu sua fala destacando o propósito da visita a Novo Hamburgo: ouvir as mulheres e entender as lacunas que ainda sustentam a violência de gênero. “Estamos aqui para ouvir a voz das mulheres de Novo Hamburgo, que lutam nas mais diversas frentes, e para fazer um raio X, com uma lupa, sobre a vida das mulheres do Rio Grande do Sul e daquelas que foram arrancadas de nós. Essa comissão nasceu após a Páscoa Sangrenta, quando dez mulheres foram mortas por feminicídio. Queremos resgatar a história das 63 mulheres assassinadas só em 2025, número que segue sendo atualizado”, explicou.
Fernanda reforçou que o enfrentamento à violência exige ações concretas e integração entre as redes de proteção. “Precisamos identificar o que existe e o que ainda falta. O feminicídio é evitável quando combatido em rede. Não podemos mais aceitar que a mulher seja tratada como propriedade, ou que o álcool e o jogo sejam usados como desculpa. A culpa é do machismo e do patriarcado”, afirmou.
A deputada encerrou chamando atenção para a necessidade de metas efetivas e fortalecimento da Patrulha Maria da Penha, ressaltando as defasagens estruturais no sistema de proteção. “Ainda estamos lutando pelo básico: o direito das mulheres viverem sem violência. Vamos seguir reivindicando políticas públicas e garantias de direitos com ainda mais força”
Relatora da Comissão Externa, a deputada federal Maria do Rosário (PT/RS) destacou que a jornada do grupo pelo estado tem sido um movimento de mobilização e memória. “Decidimos pela criação desta Comissão para que o dia seguinte ao feminicídio não seja o dia do esquecimento. Queremos dar voz e luz a essas mulheres, mesmo que suas vidas tenham sido ceifadas. É preciso acordar o Estado e o Brasil para a urgência diante de tamanha violência”, afirmou. A deputada explicou que o colegiado apresentará um diagnóstico detalhado da situação do Rio Grande do Sul, mapeando delegacias especializadas, patrulhas, varas judiciais e formas de articulação entre os órgãos de proteção. “Vamos verificar onde estão as Delegacias da Mulher, as Patrulhas Maria da Penha, as varas do Judiciário e como essas estruturas se relacionam. Só com essa visão integrada poderemos avançar”, pontuou.
Rosário ressaltou que o enfrentamento à violência também passa por autonomia econômica e igualdade de direitos. “A Lei Maria da Penha é clara: não há como superar a violência sem garantir autonomia, renda e salários iguais. Precisamos pôr fim à jornada 6x1 e garantir que toda mulher que sofre violência se sinta segura para denunciar”, defendeu.
Ela reforçou a importância do acolhimento e da estrutura municipal. “Dói ver uma das maiores cidades do estado ainda sem um Centro de Referência da Mulher. O município precisa fazer sua parte, exigir esse espaço e apoiar o trabalho da rede. Aprovamos a Lei dos Órfãos do Feminicídio porque o mundo de uma criança é a mãe. Estamos aqui por todas as crianças, mães, jovens — por todas as mulheres”, concluiu.
Representando o Conselho Municipal dos Direitos da Mulher (Comdim), Vanessa Arruda Menegat salientou os desafios locais no enfrentamento à violência contra a mulher e cobrou ações estruturais e imediatas. “Temos a obrigação de intervir e acolher. O silêncio mata. Queremos ver esses gráficos caindo cada vez mais e nossos direitos sendo respeitados”, afirmou. Ela apontou que Novo Hamburgo ainda enfrenta graves falhas na rede de atendimento, com ausência de um fluxo organizado e de profissionais capacitados. “Precisamos da reativação do Centro de Referência da Mulher, de uma rede articulada, de uma delegacia 24 horas e de equipes preparadas para atender as vítimas. São quatro demandas urgentes”, concluiu.
A major Carine Reolon, representante da Patrulha Maria da Penha da Brigada Militar, afirmou a importância da participação dos homens no enfrentamento à violência e da replicação constante das mensagens de conscientização. “É fundamental que os homens também estejam presentes e ajudem a replicar nossas falas no combate à violência. O feminicídio é o ápice. Precisamos romper o ciclo antes que ele se consolide”, afirmou.
Carine apresentou dados do município, que registrou 17 tentativas de feminicídio nos últimos cinco anos, sendo cinco casos consumados. “Onze autores seguem em regime fechado e quatro estão em liberdade. Ainda há uma subnotificação muito grande desses delitos”, pontuou.
Ela explicou que o atendimento às vítimas deve ser desburocratizado e integrado, com busca ativa e avaliação de risco imediata. “Quando a mulher liga para o 190, é porque decidiu enfrentar e pedir ajuda. Estabelecemos um protocolo para que o policial já preencha o formulário nacional de avaliação de risco e solicite a medida protetiva de urgência. O ideal é que ela fale uma única vez e receba o apoio de toda a rede, sem precisar procurar cada serviço separadamente”, destacou.
A major informou ainda que atualmente 120 mulheres estão com medidas protetivas ativas em Novo Hamburgo e que o efetivo da Patrulha passou de dois para quatro integrantes. “Toda guarnição da Brigada Militar está apta a atender casos de violência doméstica. Qualquer policial pode e deve agir para proteger a vítima”, concluiu.
A delegada Tatiana Bastos, diretora do Departamento de Proteção a Grupos Vulneráveis da Polícia Civil do Rio Grande do Sul, destacou que 93% das vítimas de feminicídio no estado morrem em silêncio, sem ter conseguido denunciar a violência. “O feminicídio não é o início, é o trágico fim muitas vezes anunciado. A vítima é quem tem mais dificuldade em pedir ajuda, presa a ciclos de dependência econômica, social e emocional. Temos o dever de agir”, afirmou.
Tatiana lembrou o caso recente de uma mulher de Novo Hamburgo, morta após dez anos de violência doméstica, na frente do filho. “Precisamos olhar para a subnotificação. Este ano apresenta o pior índice”, alertou.
Ela ressaltou que o trabalho da Polícia Civil tem se concentrado na prevenção e na integração das redes de atendimento. O estado conta com 23 Delegacias da Mulher e 92 Salas das Margaridas, mas apenas a unidade de Porto Alegre funciona 24 horas. “É uma pauta histórica. Esse trabalho qualificado e em rede é a nossa chance real de enfrentar o feminicídio”, concluiu.
A juíza titular da Vara de Violência Doméstica de Novo Hamburgo, Andrea Hoch Cenne, lembrou que a Lei Maria da Penha retirou a invisibilidade da violência praticada dentro de casa e se tornou uma das legislações mais avançadas do mundo. “Todas nós já sofremos algum tipo de violência, muitas vezes sem perceber. A Lei Maria da Penha é hoje a terceira melhor legislação do mundo sobre o tema, porque deu visibilidade e proteção às mulheres”, afirmou.
A magistrada apontou um aumento expressivo nas ocorrências, nas medidas protetivas e nos casos de prisão nos últimos cinco anos e ressaltou a necessidade de reativar o CRM e retomar as perícias diárias com o IGP para garantir um atendimento mais eficaz. “O Estado tem recursos limitados e prioriza os casos mais graves na Patrulha Maria da Penha, mas é fundamental retomar serviços essenciais e fortalecer a rede local”, observou.
Andrea também salientou que o combate à violência passa pela educação e pela responsabilidade dos homens. “Se o homem não se responsabilizar, não vamos reduzir os índices. O feminicídio é fruto de raízes culturais e históricas. A base da violência está na assimetria entre os gêneros. Precisamos trabalhar isso nas escolas e mostrar que família ideal é aquela onde não há violência”, defendeu.
Ela também citou o grupo Refluxo de Gênero, voltado à reeducação de agressores, como uma política pública simples e de grande impacto. “A punição sozinha não é eficaz. O homem não tem medo da pena, ele se acha no direito de matar. Ao trabalhar com eles, podemos realmente proteger as mulheres”, concluiu.
Representando o Ministério Público, a promotora Roberta Gabardo Fava destacou a necessidade urgente de fortalecer a rede de proteção às mulheres em Novo Hamburgo e de garantir um acolhimento seguro e humanizado às vítimas. “O debate é necessário. Fizemos uma recomendação ao prefeito pedindo a implementação do CRM, e recebemos a resposta de que ele deverá ser implantado entre 2026 e 2029. Não podemos esperar. A cidade precisa de um espaço que acolha, oriente e não julgue, onde a mulher se sinta segura para denunciar”, afirmou.
A promotora também chamou atenção para a falta de integração entre os serviços, o que muitas vezes deixa a vítima sem saber a quem recorrer. “Falta conexão na rede. A mulher não sabe qual o próximo passo, o que acontece depois, onde deve ir primeiro. É essencial haver um fluxo claro e contínuo de atendimento”, ressaltou.
Roberta defendeu ainda a necessidade de um delegado titular na Deam, preferencialmente uma mulher. “É um trabalho muito peculiar, que exige sensibilidade. Ter uma mulher à frente faz diferença. E, quem sabe um dia, possamos ter também uma perícia feminina. Seria essencial”, completou. Ela concluiu reforçando a relevância dos grupos reflexivos para homens autores de violência, classificando-os como uma medida fundamental para a prevenção.
À frente da Defensoria Especializada em Atendimento à Mulher, criada em 2024 no município, Deisi Sartori destacou que a reativação do Centro de Referência da Mulher tem sido tratada como prioridade nas discussões municipais entre as entidades da rede. “O CRM existia até 2019 e ouvimos que não foi extinto, mas absorvido por um Creas. A verdade é que há mais de seis anos não temos esse serviço bem estabelecido e isso contribui para o agravamento da violência”, afirmou.
A defensora alertou que não é possível esperar até 2029 para a implantação do novo centro. “O preço dessa demora será mais mortes no município. Precisamos de estrutura para o pós-crime, com mais peritos, um delegado titular na Deam e ampliação dos grupos reflexivos”, reforçou. “A violência doméstica não é simples, não é nós contra eles. É um problema multifatorial, baseado em relações de afeto. Os homens também precisam ser trabalhados e inseridos nesse processo”, explicou.
Deisi defendeu o fortalecimento dos grupos reflexivos de gênero como medidas protetivas. “Cuidar das mulheres e dar a elas oportunidade de romper ciclos de violência impacta diretamente em crianças, adolescentes e idosos, pois são elas que cuidam de todos e precisam estar protegidas”, concluiu.
A secretária-geral do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher (CEDM-RS), Denise Argemi, destacou que o aumento da autonomia feminina tem provocado reações mais violentas do machismo estrutural, e pediu reflexão sobre esse cenário. “Quanto mais as mulheres se empoderam, mais os feminicídios se tornam cruéis no Rio Grande do Sul. Pensem nisso.” Ela ressaltou a importância dos conselhos municipais, estaduais e federais no controle e acompanhamento das políticas públicas e defendeu a atuação conjunta da Secretaria de Políticas para as Mulheres. “Sem a nossa força, determinação e coragem, nada avança. É isso que nos move. Que cada uma leve adiante essa vontade de lutar umas pelas outras”, concluiu.
Participação popular e voz das comunidades
A audiência também foi marcada pela forte participação da comunidade e de entidades locais, que ocuparam o plenário para defender o fortalecimento das políticas públicas voltadas às mulheres. Isadora Cunha, ex-presidente do Comdim e advogada, destacou a importância de garantir renda e seguridade social para mulheres em situação de violência doméstica, reforçando que “é bom ser representada por mulheres que lutam pela gente. Não estamos sozinhas”.
Participantes lembraram que nenhuma forma de violência deve ser relativizada, e relacionaram o respeito aos animais e às pessoas como parte de uma mesma cultura de cuidado. Estudantes da rede estadual apresentaram experiências de educação emocional voltadas a meninos, inspiradas em grupos reflexivos, com o objetivo de prevenir comportamentos violentos desde a infância.
A ativista Caroline Figueiredo, idealizadora das rodas de conversa entre mulheres em bairros da cidade, defendeu a sororidade e o acolhimento mútuo como ferramentas de proteção. Já a líder comunitária Regina Domingues, do bairro Boa Saúde, reforçou que o combate à violência de gênero deve estar acima de partidos políticos. “Precisamos mostrar a força da mulher da comunidade. Essa luta é de todas nós”, afirmou.
Outras participantes também ressaltaram o papel da educação na formação das novas gerações, lembrando que muitos crimes ocorrem quando as mulheres dizem ‘não quero mais’. Para elas, ensinar meninos a respeitar e aceitar o ‘não’ é parte essencial da prevenção.
Ao final, representantes de coletivos e entidades entregaram relatórios, propostas e projetos de lei à Comissão Externa da Câmara dos Deputados, em apoio à criação e fortalecimento de políticas públicas voltadas às mulheres.
Encaminhamentos e encerramento da audiência
O encerramento da audiência pública foi marcado por compromissos concretos e apelos por fortalecimento das políticas públicas de proteção às mulheres. A deputada federal Fernanda Melchionna agradeceu a participação da comunidade e lamentou a ausência de representantes da Prefeitura de Novo Hamburgo. “Somos uma comissão de mulheres que luta pelo fim da violência política e de gênero. Precisamos enfrentar o machismo em todas as esferas. Houve um desmonte da política de proteção em 2019, com o fim do CRM. Reivindicamos a nomeação de uma delegada titular para a Deam e mais peritos no IGP — hoje há apenas um, e nenhum é mulher. Nosso papel é provocar todas as esferas para melhorar. Precisamos das mulheres vivas, todas vivas!”, afirmou.
A deputada Maria do Rosário reforçou a necessidade de interromper a escalada da violência e de garantir recursos para políticas de proteção. “Estamos tratando de um tema de vida ou morte. Sem uma rede articulada e sem a denúncia, é praticamente impossível proteger as mulheres”, destacou.
A vereadora Luciana Martins, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, finalizou o encontro com a entrega oficial de um levantamento sobre a rede de apoio de Novo Hamburgo, produzido pela Procuradoria da Mulher, além de um relatório da Secretaria Municipal de Saúde à Comissão Externa da Câmara dos Deputados. Os documentos servirão como base para futuras ações e propostas conjuntas entre o município, o Estado e o Governo Federal no combate à violência de gênero.
Os vereadores Enio Bizola (PT) e o presidente Cristiano Coller (PP) estiveram representados por seus assessores. Éliton Ávila (Podemos) justificou a ausência no debate.

Assista a audiência pública na íntegra